Mundo novo

Entender que a separação entre sagrado e secular é artificial, liberta e conforta

Nos próximos meses, vou dedicar esta coluna para explicar como exercitar as disciplinas espirituais. Mas, antes de alguém refletir e vivenciar o texto no contexto, em sua plenitude, é preciso desfazer a separação artificial entre o que é sacro e secular.

Em termos gerais, o que chamamos hoje de secularismo nada mais é do que a exigência justa do ser humano de exercer seu direito de escolha dado por Deus, de inclusive não crer nEle. Nesse sentido, o secularismo foi, é, e será um grito genuíno de libertação.

Em sua essência, o secularismo exige a separação da religião e estado; fé e governo. O movimento secular apareceu no cenário mundial ocidental como uma reação ao uso da religião para fins de opressão. Uma reação contra a opressão daqueles que ousam cometer os “pecados” de pensar, duvidar e questionar. De fato, o secularismo não é, necessariamente, a rejeição a Deus, mas sim a homens e a instituições religiosas que não O representam dignamente.

O problema com a dicotomia entre sacro e secular é o risco de categorizar e compartimentalizar o mundo que nos cerca. Ao assumir essa visão, espaços, coisas, ações ou ideias passam a ser avaliados, assimilados ou rejeitados de acordo com essa falsa polarização.

O resultado é uma esquizofrenia cristã que nos força a viver diferentes papéis em diferentes contextos. O cristianismo contemporâneo por vezes abraça com força essa ideia, sem perceber que tal separação é perigosa e artificial. Perigosa porque exclui Deus de tudo o que é secular ou comum. Artificial porque não é natural, mas fabricado, por isso, postiço, fingido e dissimulado.

Ao defender essa postura, o cristianismo se torna o maior aliado do projeto secular de eliminar o Onipresente da esfera comum da existência humana, segregando Deus ao que é sacro. Dessa maneira, Deus fica preso ao texto e excluído do contexto.

Porém, aqueles que buscam viver o texto em sua essência e pureza reconhecerão que essa divisão artificial somente pode ser vencida por uma visão de mundo unificadora, que enxerga e se submete à soberania de Deus em todas as esferas da existência humana.

Crer nessa separação parece ser apenas o outro lado da moeda do secularismo que, em sua forma mais radical, tenta futilmente apagar os vestígios da assinatura de Deus em Sua obra criadora. O indivíduo espiritual no mundo contemporâneo não pode aceitar a polarização sacro versus secular, simplesmente porque são inexistentes os espaços ou coisas sobre os quais Deus não têm autoridade ou não Se faz presente.

Uma visão de mundo deturpada aprisiona Deus naquilo que consideramos religioso e sufoca o florescer de uma espiritualidade viva e vibrante, pronta para abraçar o encantamento divino que santifica tudo que Lhe convém. Aceitar essa dicotomia opressora é tentar inutilmente limitar o ilimitado; conter o que é livre; definir o que é indefinível; dominar o que é soberano; decretar o impossível.

O ser humano espiritual também é secular no sentido de não querer ser restringido do seu direito de viver com empolgação a graça de Deus. Ninguém me tirará o direito, a alegria e o prazer de viver a reconciliação com Deus e experimentar a “paz de Deus, que excede todo o entendimento…” (Fp 4:7).

Talvez, precisemos caminhar ao lado dos escritores bíblicos e viver com eles as coisas que chamamos de comum ou secular. Quem sabe assim compreendamos como é viver o contexto comum, como um ser humano comum, mas com uma visão extraordinariamente libertadora e confortadora de que Deus reina soberano sobre a unidade universal. Seu reino nunca será limitado por discurso humano ou vontade que decreta onde Ele pode, deve e vai existir, agir ou governar.

Caminhar com os discípulos retratados na Bíblia talvez nos salve de uma existência quase cristã ou quase espiritual. E nos ensine a ver a sacralidade do que é comum ou secular. Quem escreveu “quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus” (1Co 10:31), aprendeu com Aquele que viveu o comum de maneira sagrada. Aquele que podia ser encontrado em festas comuns, comendo com pessoas comuns, sofrendo e sorrindo sagradamente no contexto secular humano.

Nele, o texto se reflete perfeitamente, soberano e majestoso. Não na categoria sacra, mas no tudo que está fazendo novo (Ap 21:5). Inclusive eu!

Paulo Cândido. Retirado de Conexão 2.0.

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