Criacionismo: ainda viável?

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Os pesquisadores Brian e Deborah Charlesworth assim iniciam sua obra introdutória sobre a evolução:

O consenso na comunidade científica é de que […] todos os organismos existentes na atualidade são os descendentes de moléculas autorreplicantes que se formaram por meios puramente químicos há mais de 3,5 bilhões de anos. As formas sucessivas de vida foram produzidas pelo processo de “descendência com modificação”, como o chamou Darwin, e estão relacionadas umas às outras por uma genealogia ramificada, a árvore da vida. Nós, seres humanos, somos mais próximos dos chimpanzés e dos gorilas, com quem tivemos um ancestral em comum há 6 ou 7 milhões de anos. […] A origem de todos os vertebrados (mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes) remonta a uma pequena criatura similar a um peixe que carecia de espinha dorsal, que existiu há mais de 500 milhões de anos (Brian e Deborah Charlesworth, Evolução [Porto Alegre: L&PM, 2012], p. 9, grifo nosso).

Diante desse consenso científico (ou praticamente isso), é intelectualmente viável continuar sustentando a posição criacionista?

Antes de respondermos essa pergunta, é preciso admitir que, em geral, a defesa do criacionismo mais atrapalha do que ajuda, mesmo do ponto de vista dos que adotam essa visão. O biólogo e paleontólogo criacionista Leonard Brand, Ph.D. em biologia evolutiva pela Cornell University, explica:

Muito do material criacionista existente supõe que a evolução é apenas uma teoria sem sentido que oferece às pessoas uma forma de fugir da verdade sobre Deus. Esses criacionistas pensam que, se os evolucionistas simplesmente enxergassem as evidências óbvias, perceberiam que a Criação é verdadeira. […]

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Ainda que bem-intencionadas, algumas pessoas usam essa abordagem com os jovens cristãos, muitos dos quais frequentam universidades públicas onde cientistas lhes apresentam um gigantesco conjunto de dados que destrói suas crenças criacionistas. Então, esses jovens descobrem que a evolução não é uma teoria estúpida, mas pode ser apoiada por uma esmagadora variedade de evidências. Nesse processo, muitos deles acabam perdendo a fé.

Seria muito melhor explicar aos jovens que os evolucionistas são pessoas inteligentes, que possuem ampla evidência para sua compreensão, mas que há outras maneiras (a nosso ver, melhores) de interpretar as evidências. Embora tenhamos boas razões para nossa posição, não devemos subestimar a habilidade dos evolucionistas em defender a deles (Leonard Brand e Cindy Tutsch, “Presenting evolution and Creation: How? [Part 1]”, Ministry, fevereiro de 2005, p. 21, 30).

Desfazendo mitos sobre o criacionismo

Nesse diálogo, precisamos ter o cuidado de não superenfatizar as diferenças entre a evolução e o criacionismo. O Dr. Leonard Brand esclarece:

A palavra “evolução” significa mudança. Há suficiente evidência de que esse processo evolutivo (ou alguma variação dele) realmente acontece e produz novas variedades e novas espécies. […] Em quase todos os aspectos, intervencionistas [ou criacionistas] e evolucionistas naturalistas concordam sobre a maneira pela qual esses processos acontecem. […]

Embora os intervencionistas sejam com frequência representados como antievolucionistas, o fato é que eles aceitam [a existência de] um processo de mudança morfológica [ou seja, evolução]. […]

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Dois dos mais respeitados livros-texto sobre evolução –  Mark Ridley, Evolução (Porto Alegre: Artmed, 2006) e Douglas J. Futuyma, Biologia evolutiva (Ribeirão Preto: Funpec Editora, 2009) –  apresentam ampla evidência em favor da realidade da microevolução e da especiação. Discutem também padrões no registro fóssil, adaptações biológicas e outros conceitos usados como evidências da megaevolução. Mas esses conceitos não descartam o intervencionismo. […]

É interessante ponderar sobre isso quando participo de encontros de organizações científicas como a American Society of Mammalogists (Sociedade Americana de Mastozoologia) ou a Geological Society of America (Sociedade Geológica Americana). A maioria dos cientistas presentes nesses encontros rejeitaria o intervencionismo, e a maioria provavelmente presume que intervencionistas não podem ser cientistas eficientes. Contudo, provavelmente 80 ou 90 por cento da pesquisa relatada poderiam ser desenvolvidos por qualquer intervencionista com formação na área.

Mesmo na área da evolução, a maior parte do que é estudado se limita a microevolução, especiação e os aspectos da macroevolução aceitos também por intervencionistas. Isso é verdade também em relação à maioria dos aspectos das ciências da terra, especialmente as áreas relacionadas à pesquisa experimental ou à comparação com os processos atuais. Nesses temas científicos, há coletas de dados relevantes e testes de hipóteses eficazes, independentemente da filosofia pessoal  do pesquisador (Leonard Brand, Faith, Reason, and Earth History: A Paradigm of Earth and Biological Origins by Intelligent Design, 2ª edição [Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2009], p. 175-176, 190, 281, 299, grifo nosso).

Um rumo para o criacionismo

Voltemos à pergunta inicial: é ainda academicamente viável, no século 21, sustentar o criacionismo? É possível aceitar o relato bíblico da Criação sem comprometer a integridade intelectual?

Creio que sim. E, na minha opinião, a melhor defesa dessa resposta é apresentada por Fernando Canale no livro Creation, Evolution and Theology: An Introduction to the Scientific and Theological Methods (Criação, evolução e teologia: uma introdução aos métodos científico e teológico) (Libertador San Martín: Editorial Universidad Adventista del Plata, 2009). O Dr. Canale é professor de teologia e filosofia na Andrews University (EUA) e um especialista em filosofia contemporânea. Em breve, esse livro será publicado em português. Até lá, você pode ler a versão prévia desse estudo, publicada em três partes no periódico Andrews University Seminary Studies (, e partes).

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Em poucas palavras, Canale argumenta que a solução para a sobrevivência intelectual do criacionismo é a filosofia contemporânea (pós-moderna).

Mas o pós-modernismo não é ruim?

A compreensão pós-moderna sobre a verdade com frequência é mal-interpretada. Em outro artigo deste blog, “Pós-modernidade: inimiga ou amiga?”, Ed René Kivitz esclarece que a pós-modernidade não “nega a existência da verdade; ela só diz que a razão humana não dá conta de conhecer a verdade”.

Simplificando bastante a argumentação do Dr. Canale, o que ele diz é o seguinte:

A compreensão modernista (iluminista) sobre a razão humana supõe a existência de uma “verdade universal absoluta” independente da contribuição do sujeito (observador). Em outras palavras, a razão humana é capaz de estabelecer, de maneira segura, o que é verdade e o que é erro. Mas o pós-modernismo derrubou o mito da razão como o árbitro absoluto do que é a verdade. A filosofia pós-moderna pode ser resumida pela frase: “Conhecer é interpretar” (Richard Rorty). Ao contrário do que popularmente se imagina, isso não significa negar a existência de uma verdade absoluta, mas negar a afirmação de que alguém é capaz de alcançar um conhecimento absoluto ou preciso.

O filósofo Paul Feyerabend argumenta que, “de acordo com os nossos resultados atuais, dificilmente alguma teoria é consistente com os fatos. A exigência por sustentar somente as teorias que são consistentes com os fatos disponíveis e aceitos nos deixaria novamente sem nenhuma teoria. Repito: sem nenhuma teoria, porque não existe uma única teoria que não possua dificuldades”.

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O mito modernista da ciência consiste na ilusão de que os dados empíricos (produzidos por testes e experiência) são um fundamento que produz resultados “verdadeiros”, absolutos, universais e totalmente seguros. Mas hoje sabemos que os princípios e as regras da ciência são, em si mesmos, o produto de interpretações que mudam com o passar do tempo.

Os cientistas não mais podem supor que a aplicação das “regras corretas” do jogo (método científico) produzirá apenas uma explicação possível da realidade, especialmente quando a questão é tão complexa e abrangente quanto o assunto das origens. Quanto mais complexos são os fatos, maior é a probabilidade de surgirem várias explicações racionalmente possíveis.

Portanto, nem a Criação nem a Teoria da Evolução pode ser considerada “irracional” ou “não científica”; ambas são racionais, mas atuam sob diferentes regras de racionalidade e método. E, no caso de conflito entre teorias, a filosofia pós-moderna sustenta que a razão pode somente nos ajudar a interpretar a realidade, mas não pode decidir qual interpretação é a verdadeira (absoluta). Sendo que a razão não possui regras universais, as escolhas sempre envolvem algum tipo de “fé”, não somente na teologia, mas também na ciência. Tanto a Criação como a Teoria da Evolução produzem explicações coerentes e persuasivas que podem ser aceitas somente com base na “fé” em seus respectivos fundamentos (pressuposições).

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Do ponto de vista da razão humana, Criação e evolução não são fatos, mas teorias que reconstroem eventos passados que permanecem fora da nossa experiência empírica. Em termos de sua condição teleológica, a ciência das origens é histórica (estuda o passado) e, portanto, difere radicalmente do método da ciência empírica (experiências). Em relação à Criação e à Teoria da Evolução, nenhuma corroboração é possível em termos racionais (adaptado de Canale, Creation, Evolution, and Theology, p. 43-51, 160-166).

A fim de se perceber a relevância do livro de Canale, é interessante conferir a resenha crítica feita pelo Dr. Ervin Taylor, um dos mais destacados cientistas cristãos que defendem a Teoria da Evolução (“Review Article: Fernando Canale’s Creation, Evolution, and Theology: The Role of Method in Theological Accommodation”, Andrews University Seminary Studies, v. 46, nº 1 [primavera de 2008], p. 83-90). Embora aponte várias supostas falhas na argumentação de Canale, Taylor afirma que, entre as publicações criacionistas, “esse livro é singular” (p. 83). De acordo com ele, o livro “desmente a imagem popular de que os fundamentalistas […] são desinformados, não instruídos ou intelectualmente inferiores. Essa obra densamente argumentada de erudição deveria pôr fim a esse mito” (p. 89). Por isso, acredito que a argumentação do Dr. Canale (embora bastante simplificada acima) seja o melhor rumo que os criacionistas podem tomar no diálogo sobre evolução e criacionismo.

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