Fé em campo

#vaiBrasil

Uma frase simples, cheia de significado, carregada de razão e emoção, revela a realidade de um ser humano indivisível. Mais do que isso, demonstra que a dicotomia razão versus emoção, presente no discurso religioso, é uma fabricação artificial. Enquanto separar o sacro do secular (veja o post anterior) se refere a algo externo ao ser humano, a suposta divisão entre pensar e sentir é interna.

Por todos os estádios, ruas e lares brasileiros é possível escutar os gritos de uma nação empolgada por um esporte. A essa nação se juntam gringos brancos, amarelos e negros com variados sotaques e costumes formando um caleidoscópio gigante, que exemplifica a diversidade humana reunida ao redor de uma paixão; o futebol.

No meio da Copa, descobrimos um laboratório perfeito para a compreensão de uma característica humana que é essencial para o desenvolvimento espiritual no século 21: a integralidade do ser humano.

De certa forma, parece que o cristianismo protestante conservador demonizou as emoções e se apegou a um tipo de espiritualidade intelectual ou racional, por vezes árida, com uma rigidez fossilizadora. Talvez isso tenha acontecido em função do objetivo nobre de se distanciar do desequilíbrio religioso extremista, natural ao ser humano, e das manifestações espiritualistas questionáveis de dentro e de fora do protestantismo.

Talvez, outra possível explicação seja a influência do pensamento moderno e sua proposta epistemológica de buscar o conhecimento da verdade de forma objetiva, tentando separar as pressuposições e paixões humanas que tendem a deturpar a compreensão dessa verdade.

Seja qual for a razão para tal cirurgia, o fato é que essa separação não pode ser determinada pelas ciências bíblicas nem pelas ciências humanas como áreas de estudo do texto e do contexto.

É possível que o texto bíblico mais popularmente usado para defender essa noção seja o de Romanos 12:1, em que aparece a expressão “culto racional”. O ponto é que a palavra grega utilizada nesse verso pode ser traduzida também como espiritual. É o que fazem algumas versões em português.

Refletindo a dicotomia grega do corpo e alma, essa herança acabou nos ensinando que, na espiritualidade, a emoção é má e desagrada a Deus, enquanto a razão é boa e nos coloca em conexão com o Criador. Por isso, em alguns contextos religiosos, as manifestações espontâneas de emoção, ainda que plenamente equilibradas e controladas racionalmente, são, na melhor das hipóteses olhadas com desconfiança, quando não recebem um nariz torto ou são banidas inteiramente.

O resultado é que pensando assim, o cristão se torna plástico, robotizado, duas caras, falso. Argumentar que a emoção pertence somente ao campo do futebol é projetar a imagem de um Deus sisudo, uma distorção criada pelos homens. Foi por causa dessa visão sobre Deus que, quando criança, ouvi frases do tipo: “a música que nos faz mexer do pescoço para baixo Deus não aprova”, ou como minha esposa ouvia em sua igreja em outra parte do país, “quando damos gargalhadas os anjos choram”. Ideias nessa linha levam os cristãos a viver uma espiritualidade engessada, sem graça, amedrontada, que os priva de integralidade e espontaneidade diante do Senhor.

Ao separar razão da emoção na espiritualidade, transformamos o homem em uma tangerina, que pode ser dividido em gomos. Com isso, geramos um cristão compartimentalizado e compartimentalizador; quando ele vai à escola exercita sua intelectualidade; quando lida com a família, acessa o gomo afetivo de sua personalidade. Assim, o ser humano é tratado como máquina no trabalho e pode chorar apenas no banheiro, longe da vista de todos, afinal, no trabalho as emoções não são bem-vindas. Claro! Se as emoções fossem permitidas no ambiente de trabalho, os funcionários teriam que ser tratados como gente, com respeito e dignidade, e isso pode afetar os lucros.

Nesse contexto, é comum encontrar pessoas que parecem ser cristãs durante as atividades religiosas, mas que no cotidiano da selva de pedra urbana utilizam-se das mesmas estratégias, regras e valores de qualquer humanista, voraz capitalista, secular ou ateu. Em suas relações afetivas e paixões, seu cristianismo também é miserável e a espiritualidade padece.

Fomos criados por Deus como um todo. Somos declarados “alma vivente” (Gn 2:7). O ser humano é integral e carrega em si toda a beleza e complexidade de suas dimensões cognitiva, com seu conhecimento, sabedoria e lógica; e afetiva, com seus sentimentos e definições estéticas. O urbano que caminha nos espaços públicos de nossas cidades, onde dividimos espaços comuns, é em si um universo complexo, que luta pelo equilíbrio de suas facetas, o que chamamos de sanidade.

Essa integralidade humana é retratada nas narrativas bíblicas. O medo e vergonha de Adão e Eva (Gn 3:10), o desespero do inconformado Jó (Jó 1:20, 21), o pavor e a angústia de Jacó (Gn 32:11, 24, 25), a explosão de alegria de Miriã (Êx 15:20), o desespero e amargura de Ana (1Sm 1:9, 10), a ira de Davi (2Sm 12:5), a frustração e tristeza profunda de Elias (1Rs 19:3-5) a raiva de Jonas (Jn 4:1), a decepção contida de José ao ouvir a notícia da gravidez de Maria (Mt 1:18-21), a euforia de Simeão e Ana ao segurar o bebê Jesus no dia de sua dedicação no templo (Lc 2:25-38), a impulsividade e preconceito de Pedro (Mt 26:51; 26:69-75Gl 2:11-14), o choro de Jesus (Jo 11:35).

Viver hoje o texto no contexto requer a liberdade de ser integral. De experimentar, sem medo, a submissão de todas as dimensões humanas ao controle e transformação do Espírito Santo. O “vai Brasil” que a Copa nos brinda, revela a maravilhosa complexidade confusa da humanidade de todos nós. Aí está nosso medo e esperança, força e fraqueza, amor e desafeto, confiança e dúvida, razão e emoção, diante de um cenário fútil, mas apaixonante.
O viver a espiritualidade não elimina nada do que somos. Ao contrário, toca e molda nossas dimensões, todas vividas para a glória dAquele que assim nos fez integralmente. NEle, somos todo, vivendo completa e intensamente tudo o que somos e em todas as nossas dimensões somos “tudo novo” de novo. Finalmente, o cristão integral pode soltar o grito da garganta: “Ah! Sou brasileiro e vivo com Deus, com muito orgulho, com muito amor!”

#vaiBrasil

Paulo Cândido. Retirado de Conexão 2.0.

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