Yeshua, Hayehudi (Jesus, o judeu)

Geralmente é uma grande surpresa para a maioria dos cristãos e judeus perceber que Jesus, a figura central da fé cristã, nunca foi cristão e nunca pertenceu a uma igreja cristã. Pelo contrário, durante toda a sua vida, Jesus (cujo nome hebraico era Yeshua) não foi outra coisa senão um judeu. Ele nasceu como judeu e viveu e morreu como tal. Todos os eventos de sua vida, morte e ressurreição, narrados nos evangelhos e no primeiro capítulo do livro de Atos, ocorreram bem antes do início da igreja institucionalizada e, portanto, dentro do judaísmo de sua época.

Hoje, o reconhecimento da natureza judaica de Yeshua, sua vida e ensinamentos tem produzido um profundo impacto sobre as perspectivas judaica e cristã sobre ele e sobre a mensagem do Novo Testamento. As últimas décadas têm visto um número crescente de estudos e obras que desafiam as compreensões tradicionais cristã e judaica sobre o assunto. Surge um movimento crescente, em ambos os lados, que busca revisar os pontos de vista tradicionais, defendendo que nossa compreensão sobre Yeshua, sua pessoa e sua mensagem deve ser reformulada.

Um judeu praticante

Mesmo através de uma pesquisa superficial da vida e da mensagem de Yeshua, percebe-se a profundidade de seu judaísmo. Nascido de uma mãe judia, ele era judeu segundo os padrões mais ortodoxos. Como qualquer menino judeu, ele foi circuncidado aos oito dias de idade (Lucas 1:21; cf. B’reshit [Gênesis] 17:12). Ele recebeu seu nome em sua cerimônia de brit milá (circuncisão), segundo o costume judaico que se mantém até hoje. Como filho primogênito judeu, ele foi levado a Jerusalém por seus pais para ser resgatado por meio da cerimônia de pidyon-haben, “como está escrito na Torah de Adonai: ‘Todo primogênito do sexo masculino deve ser consagrado a Adonai’” (Lucas 2:23; cf. B’midbar [Números] 3:12-13, 45-51; 18:16). [1]

No relato da vida de Yeshua, encontramos também a mais antiga referência histórica à cerimônia judaica de Bar Mitzvá (a celebração da maioridade religiosa de um menino judeu). Aos 12 anos de idade, ele foi a Jerusalém para participar da celebração religiosa de Pessach (“Páscoa”) como membro adulto da comunidade, e se engajou na discussão sobre a Torá com alguns líderes religiosos de Jerusalém (Lucas 2:41-52). O registro reflete uma prática muito antiga dessa cerimônia porque, embora a idade para Bar Mitzvá geralmente seja 13 anos, em algumas comunidades orientais antigas, como a comunidade sírio-judaica de Alepo e Damasco, se um menino fosse considerado muito religioso e avançado em seus estudos da Torá, ele realizava seu Bar Mitzvá com a idade de 12 anos em vez de 13.

Como judeu praticante, Yeshua usava tzitzit (“borlas”) nos cantos da sua roupa como lembrete de que havia tomado sobre si o dever de honrar a Lei de Deus (veja Mattityahu [Mateus] 9:20; Marcos 27; Lucas 8:44; cf. B’midbar [Números] 15:37-41). No dia de Shabbath era seu costume ir à sinagoga, e ele tomava parte ativa nas cerimônias, lendo os rolos bíblicos e apresentando a derashá (“sermão”, Lucas 4:16-21). Durante as festividades religiosas judaicas, ele costumava ir a Jerusalém e participar das celebrações do Templo. [2]

Um rabino judeu

Os evangelhos descrevem seu ministério de três anos e meio como rabino itinerante (Mattityahu [Mateus] 4:23-25​​). Ele foi reconhecido como rabino por seus contemporâneos: Nicodemos, um importante membro do Sinédrio (o conselho governante judaico da época), que o chamou para conversar (Yochanan [João] 3:2); e da mesma forma muitos dos seus discípulos (Yochanan [João] 2:38; 11:28, 20:16). Seus ensinamentos eram destinadas a ajudar as pessoas a cumprir a Torá e viver uma vida de dedicação a Deus e à Sua Palavra. No início de seu ministério, ele ensinou: “Não pensem que vim abolir a Torah ou os Profetas. Não vim abolir, mas completar. Sim, é verdade! Digo a vocês: até que os céus e a terra passem, nem mesmo um yud ou um traço da Torah passará […]. Portanto, quem desobedecer à menor dessas mitzvot e ensinar outras pessoas a agirem da mesma forma será chamado ‘menor’ no Reino do Céu. Mas quem obedecer a elas e ensinar dessa forma será chamado ‘maior’ no Reino do Céu” (Mattityahu [Mateus] 5:17-19).

A maneira de Yeshua orar era judaica, como pode ser visto em sua oração modelo (Mattityahu [Mateus] 6:9-13). As palavras de abertura: “Pai nosso que estás no céu” (em hebraico, Avinu she-ba-shamayim), são parte de muitas orações judaicas. Outros elementos dessa oração têm muitos paralelos próximos com duas das principais orações judaicas que sobreviveram aos séculos: o Kadish e a Amidá. Assim como no Kaddish e na Amidá, na oração de Yeshua, por exemplo, o nome de Deus é santificado e louvado, há um pedido para a vinda do Seu reino e para que Sua vontade seja feita. Na verdade, a mesma forma verbal aparece no início do Kaddish e na oração do Pai-nosso: Itqaddash Shemeh/Shimcha (“santificado seja o Seu/Teu Nome”).

A morte de Yeshua também aconteceu dentro do contexto judaico da turbulência política presente na terra de Israel em seus dias. Como um grande número de seus irmãos judeus, ele sofreu a morte violenta por crucificação nas mãos do poder romano ocupante. Sua crescente popularidade entre o povo da terra, sua entrada triunfal em Jerusalém, quando as multidões de peregrinos judeus o saudaram com os títulos messiânicos de “Filho de Davi” e “Bendito o que vem em nome de Adonai”, e sua atitude severa em relação à liderança corrupta do Templo de Jerusalém (Mattityahu [Mateus] 21:1-17) selaram a oposição daqueles que estavam envolvidos com o poder romano e não tinham nenhuma simpatia por ele. Eles precisavam detê-lo antes que esse movimento messiânico popular saísse de controle e se tornasse uma ameaça à situação política (veja Yochanan [João] 11:45-56). Assim, ele foi acusado de crime contra a Lex Julia Laesae Majestatis, a lei romana que proibia qualquer pessoa de pretender qualquer título real ou posição dentro do território do Império Romano. O único rei da Judeia, por lei, era Tibério César. A pena para tal crime era a morte. E assim Yeshua foi crucificado, com a acusação de seu crime afixada sobre a sua cruz: “Yeshua de Natzeret, o rei dos judeus”.

Um movimento judaico

O crescente movimento de reconhecimento messiânico de Yeshua foi um importante fenômeno da fé judaica na época. Desde o seu nascimento, judeus muito piedosos e religiosos reconheceram nele o Messias judeu. Para Zecharyá HaKohen, o nascimento de Yeshua foi o cumprimento das promessas de Deus aos pais e a prova de que Ele havia Se lembrado da Sua santa aliança (Lucas 1:68-73). Shimon, o Ancião, provavelmente um dos primeiros rabinos que aparecem no tratado de sabedoria judaica Pirkei Avot (“Ditos dos pais”), orou sobre ele dizendo: “[…] Tua yeshu‘ah [salvação/Jesus], que preparaste na presença de todos os povos – uma luz que levará para revelação aos goyim e glória a Teu povo Yisra’el” (Lucas 2:30-32). [3]

Durante sua vida multidões de judeus o seguiram (Mattityahu [Mateus] 4:25; 8:1; 9:35-38). Muitos judeus influentes e membros do Sinédrio o admiravam e alguns eram seus discípulos secretamente (Yochanan [João] 3:1-21; 7:50-52; 19:38-39). Em sua entrada triunfal em Jerusalém, ele foi recebido por multidões como profeta e até como o “Filho de Davi” (Mattityahu [Mateus] 21:1-11). Sua prisão, julgamento e condenação precisaram ser realizados à noite por medo de que provocassem uma revolta entre o povo, que o admirava e seguia (Mattityahu [Mateus] 26:3-5; Lucas 22:1-6). Nos anos que se seguiram, o número de judeus que o reconhecerem como o Messias aumentou mais e mais (Atos 4:4; 5:14; 6:7; 9:35) até que, em meados do primeiro século da Era Comum havia, apenas na área de Jerusalém e arredores, “dezenas de milhares” de judeus que acreditavam em Yeshua como o Messias (Atos 21:17-20). De fato, antes da destruição de Jerusalém em 70 E.C., esse movimento messiânico se tornou o maior grupo religioso dentro do judaísmo. Seus membros viveram e proclamaram, tanto a judeus como a gentios (Atos 1:8; Romanos 1:17), sua crença em Yeshua como o Messias ressuscitado.

Se Yeshua viveu como judeu e foi tão popular entre os judeus, por que esse movimento messiânico perdeu a ligação com suas raízes e contexto religiosos? Por que Yeshua, o judeu, tornou-se um estrangeiro para seu próprio povo? A história desse desenvolvimento trágico começou no século II E.C. e é muito longa e complexa para ser abordada aqui. No entanto, o que estamos vendo atualmente é a volta de Yeshua para casa. E, com ele, ressurge a esperança de que está sendo preparado o caminho para que nós também, judeus e cristãos, nos voltemos um para o outro e vivamos como irmãos de uma fé comum no Deus de Israel. [4]

Referências:

1. As citações do Novo Testamento foram retiradas da Bíblia Judaica Completa (São Paulo: Editora Vida, 2010).

2. Sobre a participação de Yeshua na Pessach (“Páscoa”), veja Yochanan [João] 2:13-35; 6:4-71; 11:55-20:29. Para Sucot (“Tabernáculos”), 7:2-8:20. Em 5:1-47, há referência a um festival de peregrinação religiosa, mas ele não é identificado. Em 10:22-42, é feita referência a eventos que ocorreram durante Hanucá, a festa que celebra a “Dedicação” do Templo na época de Judas Macabeu, em 165 A.E.C.

3. O rabino Shimon, o Ancião, era neto do famoso Hillel e pai do grande Gamaliel II. Em Pirkei Avot 1:17-18, é relatado sobre ele: “Shimon, seu filho, disse: ‘Todos os dias da minha vida fui criado entre os sábios e não encontrei nada que fosse melhor para a pessoa que o silêncio. Não é o estudo que é o principal, e sim a prática; e todo aquele que fala demais traz [favorece] o pecado’. Rabban Shimon ben Gamliel disse: ‘O mundo perdura em virtude de três coisas – justiça, verdade e paz, como foi dito: Verdade e julgamento de paz você deve administrar em seus portais (Zecharyá 8:16)’”.

4. Para saber mais sobre o tema desse artigo, veja Jacques B. Doukhan, Israel and the Church: Two Voices for the Same God (Peabody, MA: Hendrickson, 2002), p. 1-32. Sobre a posterior separação entre judeus e cristãos, veja idem, p. 33-72. Sobre o diálogo e a reaproximação atual, veja idem, p. 73-99.

Reinaldo W. Siqueira possui doutorado em Bíblia Hebraica (Andrews University) e pós-doutorado em Estudos Judaicos (Universidade de São Paulo). Ele é reitor do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, professor visitante em várias universidades e coordenador da Beth Bnei Tsion, formada por centros de diálogo entre judeus e cristãos na América do Sul. Retirado de Shabbath Shalom, outono de 2003, p. 28-30.

 

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