O que é legalismo?

O legalismo era um dos maiores problemas de muitos judeus do tempo de Jesus e dos apóstolos (Rm 9:30–10:4). Além disso, ele sempre foi um problema do povo de Deus, em todas as épocas. A Bíblia e os escritos de Ellen White estão repletos de advertências contra esse erro. Mas precisamos ser cuidadosos a fim de evitar uma compreensão distorcida a respeito do que é legalismo.

O que não é legalismo?

1. Legalismo não é necessariamente obedecer à lei de modo rigoroso

É impossível ser obediente “demais”. De acordo com Jesus, Seus seguidores não devem ter um padrão de obediência inferior ao dos zelosos fariseus, e sim “muito superior” ao deles (Mt 5:19, 20). A lei deveria ser obedecida externamente de modo tão rigoroso quanto os fariseus ensinavam (Mt 23:3), mas, acima disso, Deus pede a obediência interior, vinda do coração transformado por Ele (Dt 6:5-9; 10:16; 30:6).

Portanto, quem obedece aos mandamentos de forma apenas exterior e mecânica, esquecendo-se da transformação interior, não está guardando a lei de forma nenhuma! (Gl 4:21; 6:13; Tg 2:10). Os legalistas, em vez de se apegarem demais à lei, em realidade se afastam do verdadeiro sentido dela.

Paulo ensinava que o sacrifício de Cristo tornou a obediência à lei ainda mais profunda e significativa. Cristo morreu precisamente para que pudéssemos guardar a lei de acordo com a vontade de Deus (Rm 8:3, 4). Depois da cruz, Deus enviou o Espírito Santo em Sua plenitude, para escrever Sua lei em nosso coração (Hb 8:10; 10:16; cf. Gl 3:14; 5:14, 18).

2. Legalismo não necessariamente é guardar uma “infinidade” de pequenos mandamentos dados por Deus

O Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) apresenta 613 preceitos, e obviamente o propósito de Deus era que cada um deles fosse obedecido “à risca” (Sl 119:4, ARA). É importante destacar que 613 não era o número de normas acrescentadas pela tradição judaica, mas é a quantidade de mandamentos dados pelo próprio Deus. Alguns estudiosos afirmam que o Novo Testamento, ao menos proporcionalmente, contém ainda mais regulamentos que o Antigo. E os escritos de Ellen G. White, por sua vez, apresentam um número adicional de orientações dadas por Deus. Então, o problema não está no elevado número de mandamentos, nem em quão detalhados eles são. Deus deu cada norma para que realmente fosse obedecida.

Paulo nunca falou contra qualquer dos mandamentos dados por Deus. Em vez disso, ele costumava citar mandamentos específicos da lei, mostrando que a ela continua a ser um guia para a vida (Rm 13:9; 1Co 10:14, 20, 21; Ef 6:1, 2). O próprio Paulo apresentava listas de normas para o comportamento cristão (Rm 12–13; Gl 5–6; Ef 5–6; Cl 3). Portanto, o apóstolo nunca viu nenhum problema na existência de “regras”.

3. Legalismo não consiste necessariamente em seguir normas que não estão na Bíblia

Os judeus da época de Jesus enfrentavam a mesma dificuldade que nós: a Bíblia não apresenta instruções específicas para todas as situações da vida. Muitas mudanças haviam ocorrido na sociedade desde que Deus havia dado Seus mandamentos a Moisés, 1.500 anos antes. Por isso, o objetivo das tradições dos judeus era ampliar os mandamentos do Antigo Testamento a situações concretas de sua própria época. Em vez de ser uma “tradição morta”, o objetivo da tradição judaica era tornar os ensinos bíblicos relevantes para outros tempos.

Por causa dessas regras, muitos dizem que os judeus, principalmente os fariseus, eram legalistas. É verdade que muitas dessas regras eram exageradas e desnecessárias, mas não era primariamente por isso que os judeus em geral eram legalistas. Jesus Se opôs a várias tradições, não por serem legalistas em si mesmas, e sim porque invalidavam os próprios mandamentos bíblicos (Mt 15:3-6).

A prática de ampliar os mandamentos bíblicos não se limita aos judeus. Alguns cristãos escolhem, voluntariamente, seguir um estilo de vida mais rígido que o apresentado na Bíblia (cf. Mt 19:11, 12; Rm 14:5; 1Co 7:7-9; 10:28, 29), e não existe nenhum problema nisso. Alguns adventistas, por exemplo, decidem escutar apenas música sacra tradicional ou não usar leite e ovos em sua alimentação. Essas pessoas não são necessariamente legalistas. Por uma questão de personalidade, sempre haverá alguns cristãos “mais rigorosos” e outros “mais flexíveis” em questões que não estão explícitas na Bíblia e/ou que não envolvem princípios bíblicos. Mas o primeiro grupo não é necessariamente mais legalista, nem o segundo, menos consagrado.

4. Legalismo não era necessariamente a obediência às leis cerimoniais

É certo que, depois da morte de Cristo, não mais precisamos guardar as leis relacionadas ao templo (Dn 9:27; Hb 10:1-4). Mas o problema do legalismo não era primariamente esse. Até mesmo Paulo, que falou tanto contra as “obras da lei” como meio de justificação, viveu até a morte como judeu. Portanto, observava as festas judaicas, frequentava o templo e circuncidou seu assistente judeu Timóteo (At 16:3; 20:16; 21:17-26; 25:8; 28:17). Os demais cristãos judeus seguiam as mesmas práticas (At 2:46; 3:1; 21:20).

Em Gálatas (e no restante de suas cartas), o apóstolo não condena os rituais do templo em si nem qualquer outro aspecto das leis cerimoniais. Essa não era a preocupação dele. A circuncisão era somente a “ponta do iceberg”, porque o problema real era muito mais profundo. Por isso, na maior parte de Gálatas, Paulo nem sequer menciona a circuncisão, mas trata da lei como um todo (o que inclui os Dez Mandamentos). O principal erro dos oponentes de Paulo era apresentar a obediência à lei (moral e/ou cerimonial) como meio de salvação, em vez de ensinarem que a guarda dos Dez Mandamentos é a consequência da salvação pela graça.

Então, o que é legalismo?

Paulo jamais falou contra a obediência a qualquer parte da lei de Deus (o que inclui o sábado). O problema não era esse. Mas, se a obediência não é em si mesma sinônimo de legalismo, então o que é legalismo?

O legalismo judaico

Os judeus em geral acreditavam que o ser humano tem a capacidade de guardar a lei perfeitamente. Portanto, por meio da obediência, uma pessoa pode ser aceita diante de Deus e passar a fazer parte de Seu povo (Rm 2:17; 9:31, 32; 10:2, 3).

Na teologia judaica, o conceito de justificação estava ligado ao conceito de recompensa. Muitos usavam uma balança para representar o juízo de Deus. Uma pessoa justificada (absolvida) no juízo era aquela cuja obediência (ou boas obras) pesava mais que suas transgressões (cf. Lc 18:10-14). A misericórdia de Deus apenas adicionava mérito àqueles que a pessoa já possuía.

O legalismo cristão

O legalismo mantido por muitos dos primeiros cristãos não era igual ao defendido pelos judeus em geral. Os cristãos legalistas acreditavam na graça de Deus e no sacrifício de Cristo. O problema é que ensinavam que a obediência à lei (inclusive aos Dez Mandamentos) seria necessária para a justificação (At 15:1, 5; 21:21). Eles não negavam o fato de que somos salvos pelo sacrifício de Cristo, mas a cruz só podia salvar aqueles que se tornassem parte do povo da aliança através da obediência a toda a lei.

Para aqueles cristãos judeus, o sacrifício de Jesus somente acrescentaria peso ao prato da obediência na balança do juízo. Essas pessoas acreditavam que “a fé não era suficiente por si só; ela devia ser complementada com a obediência, como se a obediência acrescentasse algo ao ato da justificação” (Lição de Adultos, terça-feira). Portanto, a justificação era uma mescla entre a graça de Deus e a obediência à lei. Isso é o que Paulo tinha em mente quando disse que “o homem não é justificado por obras da lei” (Gl 2:16, ARA) ou “pela prática da lei” (NVI).

Aplicações práticas

O legalismo é mais comum do que a maioria imagina

Várias vezes, Ellen White enfatizou que os adventistas em geral não compreendiam a verdade da salvação pela graça:

Não compreendemos o assunto da salvação. Ele é tão simples como o ABC. Mas não o compreendemos (Fé e obras, p. 56).

Precisamos também de muito mais conhecimento; precisamos ser esclarecidos acerca do plano da salvação. Não existe um dentre cem que compreenda por si mesmo a verdade bíblica sobre este assunto, tão necessário ao nosso bem-estar presente e eterno. Quando começa a brilhar a luz, para tornar claro ao povo o plano da redenção, o inimigo opera com toda a diligência, para que a luz seja excluída do coração dos homens. […] Há grande necessidade de que Cristo seja pregado como única esperança e salvação. Quando a doutrina da justificação pela fé foi apresentada na reunião de Roma [Nova York], ela foi para muitos como água ao viajante cansado (Mensagens escolhidas, v. 1, p. 360).

Talvez alguns acreditem que a compreensão equivocada sobre a salvação pela graça seja um problema restrito aos primeiros cristãos e aos primeiros adventistas. Mas, em realidade, hoje a situação não é muito diferente. Uma pesquisa realizada em 2008, no Unasp, campus Engenheiro Coelho, mostra que muitos adventistas estão confusos quanto à forma como somos salvos por Deus.

O questionário era formado por dez afirmações, todas erradas. Quase 500 pessoas responderam a ele, e o índice geral de erro foi de 47,5%. É verdade que uma ou outra frase pode ser mal interpretada, porque, em contextos distintos, as palavras podem ter diferentes sentidos. Mas a maioria das frases só pode ser compreendida de uma forma. Além disso, a pesquisa mostra uma tendência muito clara. Veja abaixo as dez afirmações e o índice de erro em cada uma delas.

  1. Somos salvos por uma combinação de fé e obras: fé no sacrifício de Cristo e obras de obediência aos mandamentos de Deus. – 59,7%
  2. Somos salvos unicamente pela fé, mas obediência aos mandamentos melhora nossa imagem diante de Deus. – 20,7%
  3. A salvação é pela fé, mas para garanti-la temos que viver de modo digno diante de Deus. – 54,6%
  4. Ninguém pode ter a certeza da salvação enquanto seu caráter apresentar falhas e debilidades. – 28,9%
  5. Somente Jesus pode resolver o problema de nossos pecados passados, mas a solução para os pecados presentes é uma vida de obediência e santidade diante de Deus. – 55,6%
  6. Justificação é o que Deus faz por nós ao nos perdoar; santificação é o que nós fazemos por Ele ao obedecermos Seus mandamentos. – 65,3%
  7. Deus exige de nós perfeição, o que só é possível mediante a completa obediência à lei. – 32%
  8. A justiça de Cristo aceita pela fé é nosso passaporte para o Céu, mas o visto de entrada é nossa perfeita conformidade aos mandamentos de Deus. – 61%
  9. No dia do juízo, nossa absolvição ou condenação dependerá daquilo que fizemos ou deixamos de fazer. – 57,4%
  10. Só serão glorificados aqueles que nesta vida alcançarem vitória sobre todos os pecados e tendências pecaminosas. – 43,8%

O legalismo é mais profundo do que a maioria imagina

Para muitos, ser legalista é ter um comportamento rigoroso demais, deixando de fazer um elevado número de coisas. Com isso, as pessoas “mais equilibradas” se tranquilizam com o pensamento de que estão muito distantes do legalismo, já que dão tanta atenção a normas e regras.

Ao falarmos anteriormente sobre o que não é legalismo, não estamos defendendo uma compreensão extremista sobre o comportamento. É verdade que não podemos considerar todas as normas divinas em pé de igualdade (cf. Mt 23:23). A guarda dos Dez Mandamentos, por exemplo, é uma exigência para que alguém seja batizado. Mas não podemos fazer o mesmo com o ideal divino do vegetarianismo, mesmo que essa orientação tenha o seu lugar. Também precisamos cuidar para não confundir costumes culturais (corretos ou não) com a vontade de Deus.

Mas, no texto acima, tentamos mostrar que legalismo é algo muito mais sutil e, portanto, muito mais grave. É mais do que seguir uma “infinidade” de orientações dadas por Deus ou mesmo seguir normas que não estão explícitas na Palavra de Deus.

Legalismo não é tanto o número de normas que seguimos, nem quão rigorosamente vivemos, mas nossa atitude diante das orientações de Deus, qual função acreditamos que Sua lei desempenha em nossa vida. Legalismo não é tanto seguir mandamentos não bíblicos, mas seguir mandamentos bíblicos por motivos errados. Legalismo não é uma questão externa, mas interna.

Por essa razão, mesmo um adventista que se considere “mais equilibrado” pode ser legalista. Talvez ele considere legalistas aqueles que tentam seguir um elevado número de normas, não consomem determinados alimentos nem frequentam certos lugares. E, em muitos casos, esse indivíduo está correto em sua avaliação. Porém, é possível que esse “mais equilibrado” acredite que a obediência aos “requisitos mínimos” da vontade de Deus contribua para sua salvação. Se for assim, ele será tão legalista quanto o mais fanático extremista. Portanto, ninguém está isento do legalismo.

De qualquer modo, como o legalismo tem mais que ver com nossa atitude diante das recomendações de Deus, deveríamos pensar duas (ou mais) vezes antes de julgar os outros, de considerá-los legalistas, apenas por suas ações (cf. Mt 7:1, 2). Em vez de aplicar as orientações de Gálatas (como o restante da Bíblia) a outras pessoas, precisamos aplicá-las a nós mesmos.

Meu artigo publicado originalmente como O evangelho em Gálatas – Comentários da Lição da Escola Sabatina, publicação on-line em www.cpb.com.br (outubro-dezembro de 2011; atualmente indisponível), lição 4, “Justificação pela fé (Gl 2:15-21)” (adaptado). Este texto se baseia em Wilson Paroschi, “Paulo e a lei”, notas de sala de aula, Centro Universitário Adventista de São Paulo, 2009.

 

Back to Top