Noé, graça e ficção

No sábado passado, 26 de abril, Bruno Ribeiro Nascimento, mestrando em comunicação (UFPB), falou sobre o filme Noé em um culto jovem (JA) ocorrido em João Pessoa (PB). Abaixo está um pequeno roteiro da palestra, escrito pelo próprio Bruno.

1 – Falsa dicotomia entre sagrado e secular

Tomás de Aquino, um dos mais importantes teólogos da história da teologia cristã, fez uma distinção entre natureza e graça, com o possível objetivo de ser ‘didático’ numa discussão em que abordava o sobrenatural.

Independentemente de sua motivação, o que aconteceu na prática foi que o conceito influenciou a igreja da Idade Média de uma forma, no mínimo, estranha à Bíblia. Na ‘teologia dos bancos’, existem duas realidades paralelas: a da igreja e a do mundo lá fora, do sagrado e do secular. O sagrado estaria relacionado às coisas que alguém faz para a igreja: pregar, cantar, orar, ser pastor, tirar dízimo etc. O secular é o que você faz no dia a dia: trabalhar, estudar, caminhar etc.

Nós, protestantes de tradição evangélica, abraçamos esse conceito da Idade Média com muita facilidade: alguém só trabalha para Deus se for pastor, se trabalhar num hospital adventista ou numa escola batista. Caso não seja, então o trabalho é algo ‘secular’, você está fazendo para seu sustento, para fins ‘não santos’, ou qualquer outra coisa que dizem por aí. Há uma separação estanque: de um lado, o ‘trabalho de Deus’, que é aquilo que alguém faz na igreja; do outro, ‘o trabalho secular’, que é aquilo que alguém faz para estudar, trabalhar etc. São dois mundos diferentes.

O interessante é que esse conceito dicotômico [isto é, de separação] é estranho à revelação das Escrituras e a mentalidade do povo de Deus tal como revelada no Antigo e no Novo Testamento. A Bíblia exalta a boa criação de Deus. Afinal, no sexto dia, “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom” (Gn 1:31). Os israelitas tinham uma visão tal que Deus integrava todos os aspectos de sua vida, não apenas a ‘religiosa’, em conformidade com a visão de que o mundo é fruto da boa criação do Senhor. O próprio Deus instituiu a festa da Expiação (Lv 23:28) e a festa dos Tabernáculos (Lv 23:34), para comemorar tanto os pecados perdoados quanto a colheita final do outono.

Perceba que Deus tocava em cada ponto da vida dos israelitas, cada esfera da sua existência. A identidade do povo de Israel girava em torno de Deus. Nesse sentido, não havia essa dicotomia entre sagrado e secular. Ela é estranha à revelação. O chamado para ser pastor é um chamado divino, da mesma forma que o chamado para ser médico nos postos de saúde, para ser eletricista numa empresa, ser professor numa escola, ser jornalista numa TV, ser mãe na educação de um filho. Paulo falou claramente que o trabalho dos escravos deveria ser feito de coração, “de boa vontade, como servindo ao Senhor e não aos homens” (Ef 6:7). Por quê? Porque o conceito paulino, em conformidade com o pensamento hebreu, é que “nenhum de nós vive apenas para si, e nenhum de nós morre apenas para si. Se vivemos, vivemos para o Senhor; e, se morremos, morremos para o Senhor. Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14:7-8).

Por que isso é importante no entretenimento? Ora, devemos abandonar o conceito não bíblico de sagrado e secular, coisas da igreja (que são para Deus) e coisas que não são da igreja (e que, portanto, não seriam diretamente para Deus). A pergunta: “Podemos ouvir música que não é da igreja?” reflete claramente essa falsa dicotomia (aliás, como gostamos de uma dicotomia!). A ideia por trás desse conceito errôneo é que só fazemos algo para Deus quando operamos na esfera da igreja. Por isso, caso alguém venha a assistir um filme, ler um livro que não seja a Bíblia (ou de Ellen White ou outro ‘livro da igreja’), ouvir uma música que não seja ‘de Jesus’ etc., essa pessoa estará perdendo seu tempo que deveria ser gasto nas ‘coisas de Deus, com coisas mais espirituais, com coisas do Alto’. E se, em casos extremos (coisa de vida e morte, ou seja, em último caso), alguém venha a contemplar algo que não seja ‘funcional’, que não serve para nada, de natureza estética (um filme, um romance, um desenho), deve ter o máximo dos máximos de escrúpulo possível, fazer uma acurada e exaustiva investigação para não se contaminar com alguma ‘mensagem subliminar por trás’ (ah, se tivéssemos esse mesmo escrúpulo em nossos púlpitos!).

Essa visão simplesmente desconsidera que Deus é o Deus do belo, da arte, da estética, da boa criação (caída, é verdade, mas que tem o parecer de ‘muito boa’), da criatividade. É claro que a queda nos afastou do Senhor e o príncipe desta era reina e vem fazendo o máximo possível para desvirtuar a boa criação de Deus. Por isso, devemos conceber novamente a primazia de nossa existência para o Senhor Deus e, para isso, devemos colocá-lo em cada ponto de nossa vida, com uma visão integral que fuja o mais rápido possível desse falso antagonismo.

2 – Natureza de um texto de ficção

Como disse certa vez Antônio Cândido: “O aspecto mais importante para o estudo de uma ficção é o que resulta da análise de sua composição, não da sua comparação com o mundo real”. A preocupação da ficção não é descrever o que aconteceu, mas sim o que poderia ter acontecido dentro do campo da verossimilhança, do provável e do necessário (Aristóteles). Uma ficção é um universo paralelo, uma realidade criada, com suas leis próprias e distintas do universo do real.

Numa obra de ficção devemos estar atentos a como o autor recriou seu universo simbólico, ou seja, como ele, dentro das possibilidades simbólicas, recriou um universo que lhe é próprio. Assim, devemos respeitar as referências dentro da obra, procurando fazer uma conexão perfeitamente unitária na constituição do enredo. Devemos entender que, na ficção, a verossimilhança é empregada a fim de criar um universo ficcional aceitável que convença o espectador de sua possível existência no mundo real, mesmo que esse universo seja totalmente idealizado e imaginado. Se isso acontecer, provavelmente o espectador aceitará a realidade da obra.

Exemplo: sabemos que na realidade o homem não voa. No entanto, se eu disser que há um homem, mas que não é humano, que veio de outro planeta (Krypton) e que, por causa do nosso jovem sol, ele adquire super-poderes, para a lógica interna da narrativa, isso faz total sentido, ainda que na realidade não seja possível tal processo. Uma obra ficcional fracassa não quando ela disse algo que não é real, mas quando sua estrutura interna falha em montar um universo possível, quando há um furo em sua verossimilhança.

Além disso, numa ficção audiovisual (filme), o enredo precisa ser mostrado. Demos vários exemplos de metáforas visuais: no filme Titanic (de James Cameron) há uma cena em que a mãe de Rose, Ruth, insiste que ela deve se casar com Cal (filho de um magnata) a fim de que a relação possa resolver os problemas financeiros da família DeWitt Bukater. Mas como isso é mostrado? Ruth, ao amarrar o vestido de Rose, fala sobre a importância desse casamento, do porquê a filha ter de aceitar essa situação a contragosto etc. Enquanto vai amarrando o vestido dela, Ruth vai cada vez mais apertando o vestido de Rose, cada vez mais forte a fim de literalmente amarrar a filha no casamento com Cal. O autor não diz que a mãe ‘amarrou’ a filha no casamento. Ele mostra isso!

Nesse sentido, quando se trata de Bíblia e a fim de que uma narrativa funcione, nem sempre o diretor irá seguir a história de forma fiel porque, se o fizer, pode não funcionar. No filme O Príncipe do Egito (DreamWorks Animation), Moisés, ao receber o chamado de Deus, vai falar diretamente com o faraó. Mas a Bíblia diz que Arão serviu como intérprete. Então o filme foi distorcido? Não. Devemos entender que, se o filme seguisse stricto senso o enredo do Êxodo, não iria funcionar. Por quê? Imagine uma criança vendo o faraó falar, Arão ouvir e dizer para Moisés. Moisés escuta Arão e responde. Arão ‘traduz’ a resposta para o faraó. Seria altamente maçante e esquisito. A forma que a DreamWorks achou de a narrativa funcionar foi colocando Moisés e o faraó cara a cara, ainda que não condissesse com o que de fato aconteceu.

Sendo assim, devemos entender a lógica interna da narrativa a fim de lhe atribuir qualquer juízo de valor. No filme Crepúsculo (de Melissa Rosenberg) há uma frase que diz: “Para que você vai viver eternamente se você pode viver 70 anos de plenitude ao meu lado?”. Alguns cristãos dizem que ‘claramente’ Crepúsculo está falando que a vida eterna não vale a pena! Mas essa é uma interpretação totalmente estranha à narrativa. O contexto da frase é muito claro: Edward é um vampiro que não morre e que viu várias pessoas durante esse tempo deixarem de existir. É um verdadeiro inferno. Ele vivo, por séculos dos séculos, e várias pessoas ao seu redor indo para o túmulo! É nesse mundo que a frase faz total sentido (você não concorda?). Da mesma forma que é totalmente errado tirar uma frase de um texto bíblico, de seu real contexto, a fim de ‘provar’ algo, é errado tirar uma frase de dentro de toda uma estrutura narrativa ficcional a fim de dizer que o filme defende X ou Y.

Não exija realidade de um texto ficcional e não tome a ficção pela realidade. Código Da Vinci, por exemplo, é ficção por mais que o autor diga  que se baseia no documento ‘verdadeiro’ X ou Y.

3 – Fazendo uma ponte com Noé

Dito isto, então a ficção não seria errada? Não. A Bíblia contém ficção que obedece muito bem a verossimilhança. Há árvores falantes (Jz 9:7-15). Há o seio de Abraão e o Hades enquanto um lugar de consciência (Lc 16:19-31). Há as várias parábolas de Jesus. Se ficção é ‘errado’, então o Mestre errou!

Interessante que no “Discurso aos gregos acerca do Hades”, [o historiador judeu] Josefo descreve uma compreensão popular sobre o Hades e o seio de Abraão. E ela é bem próxima do que encontramos na parábola do Rico e Lázaro! [Na verdade, a maioria dos estudiosos atuais acredita que o “Discurso aos gregos acerca do Hades” é um acréscimo feito por cristãos à obra de Josefo. Mas, sem dúvida, esse texto representa bem as crenças mantidas por muitos judeus da época de Jesus.] O Mestre utilizou uma compreensão popular sobre a condição dos mortos no Hades a fim ensinar importantes lições sobre como devemos, nessa vida, atentar para os ensinos de Moisés e dos profetas, já que isso vai ter consequências no mundo por vir!

Mas, e Noé? A primeira coisa que devemos entender é como as coisas funcionam no enredo. Os gigantes de pedra são os mesmos anjos caídos da Bíblia? Ou eles têm outra função dentro da narrativa, sendo por isso outra coisa? Cada elemento, dentro de um roteiro, não é colocado sem mais nem menos. Há uma função estética. O autor quer mostrar algo. Devemos procurar discernir claramente o porquê desse e de vários outros elementos naquele contexto. E isso só poderá ser feito se você entender como aquele universo específico funciona.

Mas, ainda assim, e se Noé for ruim? Faça pontes para o Evangelho! Já foi constatado que o filme Noé aumentou a leitura da Bíblia em cerca de 300% (veja aqui). É muita coisa! Não deixe escapar essa oportunidade. Aproveite Noé para fazer uma ponte para o Evangelho correto!

Paulo fez isso! Ao falar com os atenienses no Areópago (At 17:28), ele citou dois poetas gregos: Epimênides (“nele vivemos, nos movemos e existimos”) e Arato (“somos descendência dele”). Paulo cita Epimênides na carta que escreveu a Tito (1:12).

Mas, e se a ficção não prestar? Siga Paulo. Na primeira carta aos Coríntios, Paulo citou uma ficção: a comédia grega Thais, do poeta Menandro, cujos escritos eram conhecidos naquela localidade. Na peça, Menandro diz: “As más companhias corrompem os bons costumes”. Isso porque Paulo estava tratando de uma falsa crença entre os cristãos, a saber, da não esperança na ressurreição. Paulo também cita uma frase presente em várias ficções do mundo antigo: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”! Os coríntios conheciam Menandro, conheciam essa frase, conheciam essa filosofia de vida. Paulo fez uma ponte a fim de falar do Evangelho com algo que fosse comum aos coríntios, ainda que empregando autores e obras seculares com doutrinas bem anticristãs (quer coisa mais anticristã do que o hedonismo?).

Por fim, muitas vezes nós cristãos esperamos que Hollywood seja uma das maiores ‘agências evangelizadoras’ do ‘Evangelho do Reino Deus’, trabalhe com princípios cristãos! Não vai. Deus disse que nós somos o sal da Terra, e não Hollywood! A ideia contida em Mateus 5 é que “esta era” vem cada vez mais apodrecendo, e o sal serve para retardar esse apodrecimento. Obedeça a Cristo: retarde o apodrecimento desta era. Pregue o Evangelho e aproveite as pontes.

Lembre-se: nós é que devemos pregar o Evangelho, nós é que somos os arautos responsáveis por levar as boas novas da salvação, nós que temos a Grande Comissão enquanto responsabilidade. Esta era jaz no maligno. Devemos implantar o Reino de Deus, ser cidades luz num mundo de trevas e aproveitar cada oportunidade [Ef 5:16] a fim de levar o Evangelho para todo o mundo em todas as nações.

Paulo fez de uma filosofia nociva, algo bom para o Evangelho. Jesus, de uma história com conceitos altamente heréticos, nos ensinou importantes lições sobre Moisés e os Profetas.

Que Deus nos dê sabedoria para que possamos trabalhar mais efetivamente em espalhar o sal do Reino na nossa área de influência, aproveitando todas as oportunidades que o imaginário e a ficção nos conceder!

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